"Durante aqueles segundos vi mais do seu verdadeiro eu, do que nos últimos anos"
(texto que deu origem ao livro)
"-Perdoe-me padre, pois eu pequei.
-E qual foi o teu pecado minha filha?
-Não sei... E agora que penso melhor, não sei se realmente pequei...
-Não estou a perceber. E se me contares o que aconteceu? Talvez eu te ajude a encontrar paz.
-Não se iluda senhor padre.
-Vá, conta-me minha filha.
-Tem tempo para uma história?
-Sim.
-Não sei muito bem por onde começar.
-Começa pelo início...
-Nem sei se teve um início... pois tudo o que começa, tem obrigatoriamente que acabar, tal como tudo o que nasce, morre. E sinceramente, não vejo isto a acabar, não vejo o fim desta tortura, nem a morte do que me atormenta.
-Não te posso ajudar se não me explicares...
-Bem, digamos que tudo começou na vulgaridade. Eu estava com amigos, ía sair, não sei muito bem porquê, por vezes limito-me a seguir a corrente.
-Continua...
-Sei que estava no Chiado, no Largo de Camões. Estava junto à estátua, fumando um cigarro, sempre na esperança ingénua de acalmar a ansiedade.
-Que ansiedade?
-A minha. Uma das poucas constantes na minha vida. Penso que o meu estado normal é uma interminável crise existencial. Mas continuando, eu estava sozinha, à espera. Entretanto chegaram os meus amigos, não me lembro bem quem eram respetivamente. Mas boas pessoas certamente.
-Isso é o mais importante! Rodearmo-nos de pessoas de bem.
-Invejo a sua ingenuidade senhor padre. O seu deus abençoou-o com essa dádiva. Bem, mas eu vou prosseguir. Os meus amigos chegaram e subimos uma das ruas que levava ao Bairro Alto, aquele sítio emblemático da capital, para os apaixonados, para olhares trocados e vidas cruzadas. Subimos e foi quando a vi.
-Quem?
-A que me levou a pecar. Era uma rapariga, ao longe simples e vulgar, mas à medida que se aproximava, era cada vez mais um maior deslumbre. Lembro-me que reparei nela e ela em mim, tentei não dar importância, pois na realidade nem sabia quem ela era. à medida que a noite ía passando, tentava abstrair-me, por vezes conseguia, mas por vezes, nem que fosse por uns segundos, recriava a imagem dela.
Estava à porta de um bar qualquer e quis ir dar uma volta. Dois amigos acompanharam-me e parámos num bar onde eles diziam ter bebidas baratas. Sentei-me no chão e esfreguei os olhos. Assim que olhei para cima, lá estava ela, agora acompanhada. Todos os seus movimentos eram confiantes, impunham-se aos dos outros. Mas o seu olhar revelava o oposto. Mostravam insegurança e movimentos ensaiados.
- Não estou a perceber o porquê da tua tortura espiritual. Ora portanto, conheces-te alguém por quem te interessaste.
-Tomara eu que fosse apenas isso, mas não. Muitas coisas aconteceram, revelando-se ela como algo a evitar.
-Mas tu não erraste.
-De acordo com o meu livro sagrado sim. Os meus dogmas são diferentes dos seus. Sei o que tenho a evitar e sei como fazê-lo.
-Então porque não o fizeste?
-Porque revivo aquele momento. O momento em que a vi pela primeira vez. E que durante aqueles segundos, vi mais do seu verdadeiro eu do que nos últimos anos."
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